«OBRIGADO, LUIS SEPÚLVEDA, PELO PORTO DE HAMBURGO»
Neste
Dia Mundial do Livro que hoje, dia 23 de abril, se
celebra, não poderíamos deixar de lembrar as admiráveis palavras
de um jovem escritor, Afonso Reis Cabral, trineto de Eça de Queirós, na sua justa homenagem a um grande escritor que nos deixou demasiado cedo, publicada, no
passado dia 16 de abril, no jornal Público.
Obrigado, Luis Sepúlveda,
pelo porto de Hamburgo
O escritor Afonso Reis Cabral foi “diretor por um dia” por
ocasião do 30.º aniversário do PÚBLICO, a 5 de Março. Ao saber
da morte de Luis Sepúlveda, na manhã desta quinta-feira,
ocorreu-lhe de imediato esta “memória”, que aqui publicamos.
«Em 1999, o porto de Hamburgo ficava em Ferreira do Zêzere. Na cama
do quarto de cima, na casa de banho, na sala, a um canto do sofá,
enquanto os adultos jogavam Bridge: o porto de Hamburgo lavava o
Verão com águas que eu, com nove anos, imaginava escuras de crude,
atacadas por um mal desconhecido. E era tal a aflição de acudir
àquela gaivota ferida, vinda do alto-mar, que eu dava voltas à casa
em busca de algo com que a salvar.
A Teresa, prima do meu pai e melhor amiga da minha mãe, dera-me o
livro no dia anterior e eu guardei-o como um achado, antes de ler a
dedicatória: “Para um menino muito especial que bem podia ensinar
gaivotas a voar”. Como verdadeira criança, acreditei nesse
encantamento: seria capaz de criar uma gaivota — e, para a Teresa,
seria especial. Ainda não sabia que ser criança é ter fé em tais
dedicatórias.
Mas
Zorbas — o gato grande, preto e gordo — tratava de resgatar o ovo
por mim.
Enquanto este não eclodia, os meus pais levavam-me pelas margens do
Zêzere em busca de lagostins, cujos rastos de fuga eram uma caça
aos gambozinos. A Joana tinha vinte e poucos anos, nadava no Zêzere
sem medo dos lagostins, e saía da água com tal beleza, com tais
movimentos de coisa bem escrita, que a julgava capaz de dissipar todo
o crude do mundo.
Regressado a casa, ansioso, percebi que à beleza se responde com
beleza. Chamei a Joana a um canto da sala, anda daí que te quero ao
pé de mim, e esperei que ela me olhasse nos olhos para lhe dizer de
surpresa, de mansinho e de coração: “Amo-te.” Acho que ela
sorriu, talvez tenha afagado o meu cabelo, falta-me a memória de um
abraço; seja como for, ela sorriu e foi ter com a Teresa, que me
disse: “Por enquanto, quero a minha filha para mim, pode ser?”.
A partir daí, a Joana evitou-me de surpresa, de mansinho e de
coração, a ver se eu acalmava, a ver se encontrava beleza noutra
pessoa, noutro sítio. A Teresa apontou-me o livro de Sepúlveda, num
gesto que dizia “continua a ler”, e eu passei as noites lendo
enquanto ouvia as discussões do Bridge e a voz ensonada da Joana.
Quanto mais acompanhava o zelo de Zorbas, mais o identificava com o
zelo da Teresa e a discrição da Joana, e quando os gatos votaram
para falarem com os seres humanos, entendi quanto custava quebrar um
tabu. Incomodado com as tiradas macacas de Matias, temendo que Ditosa
quisesse continuar gato em vez de se tornar gaivota, não me achava
merecedor da dedicatória da Teresa, e estava visto que não merecera
o amor da Joana.
Na última noite de leitura, as discussões dos adultos estavam em
ponto de rebuçado e a voz da Joana sonolenta e distante mais e mais.
Na página final, a minha barriga caiu em vertigem acompanhando
Ditosa, acabada de empurrar da torre por Zorbas. Mas a gaivota evitou
o chão e voou sobre o porto de Hamburgo, por fim sabendo ser ave.
Adormeci pouco depois, certo de que às quedas se seguem os voos.
Hoje, no meu porto de Hamburgo, Sepúlveda ainda escreve, eu ainda
digo à Joana “Amo-te”, e a Teresa ainda é viva.»
in Público, 16/04/2020
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